6 de fevereiro de 2009

conto "um momento" I

De vez em quando tenho uns ataques súbitos (à Liliana...) e o resultado é o que se pode ler!
Ana Maria Francisca gostava de passear à beira-mar sozinha. Em noites de luar, pé ante pé, caminhava calmamente pelos longos areais seguida pela sua sombra. A penumbra de si própria fora a sua confidente nos últimos anos. O seu marido e o seu único filho haviam perdido a vida num acidente de viação. Ana Maria Francisca foi a única que resistiu à morte. Desde então passou a viver à margem da vida e do mar. Perder a família foi a sua morte em vida. A frustração levou-lhe o resto do encanto que a vida lhe dera e o seu sorriso converteu-se num ar sisudo.

Como é possível um momento mudar para sempre a sua vida de alguém? Não lhe restava nada nem ninguém para além da sua sombra e da sua casa à beira-mar. O mar tranquilizava-a, pois acreditava que tinham algo em comum. Nas noites em que se sentia mais desamparada, sentava-se no alpendre e escutava. Escutava o som do bater das ondas nas rochas e a envolvência do mar na areia que lhe traziam à memória a alegria do seu filho e a ternura do seu marido. Muito se esforçava ela para chorar, mas nem um pingo vertia. Até as lágrimas a tinha abandonado.

Ana Maria Francisca já estava habituada ao abandono. Ficou órfã de mãe aos cinco anos de idade e aos 12 anos morreu o pai. Quando a sua mãe faleceu, o pai tomou-se por um desgosto tão grande que dedicou-se à bebida com um fervor maior do que aquele que dedicara a sua mãe. Foi uma paixão fatalisticamente ao estilo de Romeu e Julieta. O fígado deixou-se consumir pelos constantes afectos do álcool e a cirrose foi o apogeu. Ana Maria Francisca verteu lágrimas sem fim, tantas que acabou por ficar sem elas. Foi entregue a uma instituição de solidariedade social e aí se manteve até aos 18 anos. Nunca fora uma rapariga deslumbrada pelos estudos, esforçou-se minimamente para puder concluir a escolaridade obrigatória. Ao atingir a maturidade, encontrou emprego como empregada de bar em Lisboa. Com o seu primeiro salário, arrendou um pequeno quarto nos subúrbios da cidade. Um quarto modesto, com pouco mais de dois metros quadrados e um colchão tão gasto que estender-se sobre ele era o equivalente a dormir numa esteira de bambu.

Nunca teve amigos. A sorte também esteve poucas vezes do seu lado. Ana Maria Francisca era uma pessoa só, triste e sem vida. Os anos iam passando e só a idade a saudava anualmente. A idade brindava-a com as rugas de expressão e o ar pálido e gélido com que se tornava característica.
Continua num próximo ataque súbito...

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